Disciplina:
Filosofia
Professor:
Edney Cavalcante
O
PROBLEMA DO CONHECIMENTO
Você já se perguntou se
a realidade é de fato aquilo que seus sentidos informam que é? Será que aquilo
que você julga conhecer não sofre uma distorção? A teoria do conhecimento
se interessa por esse tipo de problema. Em primeiro lugar, porque os sentidos do
tato, da visão, da audição, do olfato e do gosto são os principais instrumentos
de conhecimento de que dispomos no dia-a-dia. Em segundo lugar, por não serem os
únicos. A razão também é nossa guia. Mas até que ponto podemos confiar nos
sentidos para conhecer as coisas? Quais os campos de atuação da razão? Quais
seus limites? Será que existe algum critério ou princípio de conhecimento que
assegure a certeza e a verdade?
Um
Problema Chamado “Conhecimento”
A questão do
conhecimento é, provavelmente, o problema mais antigo da filosofia. É verdade
que a produção e organização de conhecimentos técnicos, artísticos, agrícolas,
etc., é anterior ao conhecimento filosófico iniciado pelos pré-socráticos.
(...) no espaço de alguns séculos, a Grécia
conheceu, em sua vida social e espiritual, transformações decisivas. Nascimento
da Cidade e do Direito, advento, entre os primeiros filósofos, de um pensamento
de tipo racional e de uma organização progressiva do saber em um corpo de
disciplinas positivas diferenciadas: ontologia, matemática, lógica, ciências da
natureza, medicina, moral, política, criação de formas de arte novas, de novos
modos de expressão, correspondendo à necessidade de autentificar os aspectos
até então desconhecidos da experiência humana: poesia lírica e teatro trágico
nas artes da linguagem, escultura e pintura concebidas como artifícios
imitativos nas artes plásticas. (VERNANT, 1973, p. 04)
Antes mesmo do
nascimento da filosofia na Grécia antiga do séc. V a.C. já há uma cultura
estabelecida, sobretudo nos textos épicos de Hesíodo e Homero, mas também na
poesia lírica e nos conhecimentos rudimentares que os gregos do século VI a.C.
tinham sobre astronomia. Ao se constituir, a filosofia provoca um afastamento
gradual e doloroso desta tradição. Os heróis e os valores presentes nas
histórias de Homero e Hesíodo são questionados pelos primeiros filósofos. A
tradição mítica entra em crise e a filosofia passa a absorver questões como a
origem do universo, o bem universal, o que é o ser, a organização política de
uma cidade, etc. É provavelmente neste momento, por volta da metade do século V
a.C. em Atenas, que podemos situar o nascimento de uma preocupação com as
condições em que se dá o conhecimento. Mas por que o conhecimento é um tema
exclusivamente filosófico? Antes do advento da filosofia não existe o problema?
O helenista Jean-Pierre Vernant diz que a preocupação com o conhecimento puro,
isto é, o saber que não carrega traços religiosos ou míticos, é uma
característica dos primeiros filósofos. Homens como Tales, Anaximandro,
Anaxímenes apresentam em suas investigações uma teoria, uma visão geral do
mundo que explica racionalmente a estrutura física e espiritual desse mundo.
Vernant afirma ainda que esses primeiros pensadores tinham plena consciência de
que produziam um conhecimento radicalmente novo e, em muitos pontos, oposto à
tradição religiosa. (VERNANT, 1973, p. 156-8)
Entre a Teoria e Prática
Diversos
testemunhos mostram, na verdade, que eles [os gregos] puderam, bem cedo,
abordar certos problemas técnicos ao nível da teoria, utilizando para isso os
conhecimentos científicos da época. Desde o século VI que uma obra como o canal
subterrâneo construído em Samos pelo arkhitéktón [arquiteto] Eupalino de Mégara
pressupõe o emprego de processos já difíceis de triangulação. Há inúmeras
razões para acreditar-se que não estamos diante de um caso isolado. O termo
arkhitéktón, em Platão e Aristóteles, designa, por oposição ao operário ou ao
artesão que executa o trabalho, o profissional que dirige os trabalhos do alto:
sua atividade é de ordem intelectual, essencialmente matemática. Possuindo os
elementos de um saber teórico, ele pode transmiti-lo por um ensinamento de
caráter racional, muito diferente da aprendizagem prática. (...) o arkhitéktón,
no âmbito de sua atividade – arquitetura e urbanismo, construção de navios,
engenhos de guerra, decorações e maquinarias teatrais – apoia-se em uma techne
[arte, técnica] que se apresenta sob a forma de uma teoria mais ou menos
sistemática.
(VERNANT, 1973, p. 247)
O Conhecimento como Justificação Teórica
Ao falar do
conhecimento usamos bastante o termo “problema”. Essa expressão vem do grego e
significa literalmente “obstáculo”, “aquilo que está lançado”, o que é
“saliente”. Para que o estudo de qualquer tema seja profundo, é sempre útil
saber de antemão a problemática que se quer investigar. Isso também vale para a
teoria do conhecimento. De acordo com Franklin Leopoldo e Silva (1985), os
principais problemas que a teoria do conhecimento deve investigar são:
1) as fontes
primeiras de todo conhecimento;
2) os processos
que fazem com que os dados se transformem em juízos ou afirmações acerca de
algo;
3) a forma
adequada de descrever a atividade pensante do sujeito frente ao objeto do
conhecimento;
4) O âmbito do
que pode ser conhecido segundo as regras de verdade.
As Fontes do Conhecimento
Um dos temas
tratados na teoria do conhecimento – e que se enquadra no problema das fontes
do conhecimento – é a relação entre sensação, crença e conhecimento. O
professor Newton Carneiro da Costa, especialista em lógica e teoria do
conhecimento científico, defende, por exemplo, que todo conhecimento é crença,
mas nem toda crença é conhecimento. Explica Da Costa:
O
Sr. X pode acreditar (crer) que há vida em Netuno e ser um fato que em tal
planeta aja vida, inclusive análoga a da Terra. Todavia, ainda não se tem
conhecimento em acepção estrita, a menos que X possua justificação para sua
crença.”
(DA COSTA, 1997, p. 22).
O que se passa
neste caso é que pode haver uma coincidência entre a crença do Sr. X e a
realidade da existência objetiva de vida em Netuno. Mas o Sr. X não sabe em que
condições há vida lá, que procedimentos foram usados para se constatar isso,
etc. Da Costa afirma que, pelo menos em ciência – mas, defendemos nós,
igualmente em teoria do conhecimento – para se ter conhecimento é preciso ter
uma crença justificada. Isso quer dizer que, se o tópico é da área de
matemática pura, você precisará demonstrar aquele ponto que diz conhecer, se
for um caso de física ou economia, terá que mostrar conhecimento das leis que
governam tais áreas, ter acesso aos testes críticos, etc. O que foi dito acima
nos leva a constatar que uma pessoa tem basicamente três níveis de consciência,
cada qual correspondendo a uma perspectiva que dá corpo a sua visão do mundo.
Esses três níveis são: sensação, crença e conhecimento. A sensação é o nível em
que nosso contato com o mundo é puramente físico ou emocional. A crença, por seu
lado, é um estado mental, uma representação de um determinado estado de coisas.
Segundo Moser (2004), a crença fornece ao indivíduo uma espécie de esquema do
mundo. Nesse sentido, ela mantém uma conexão importante com o conhecimento,
como veremos. Por fim, o conhecimento propriamente dito é a capacidade de
justificarmos e validarmos nossas sentenças sobre as coisas.
Platão e Protágoras:
Racionalismo e Relativismo
O que de fato
diferencia esses níveis de conhecimento de que falamos, ou seja, qual a
natureza específica da sensação, da crença e do conhecimento? Vejamos o que
Platão e Protágoras escreveram a respeito. Platão é um filósofo nascido em
Atenas do período clássico. Sua obra trata de política, moral, ciência e arte.
Platão descrevia suas teses em textos escritos na forma de diálogos temáticos,
isto é, cada diálogo tratava de um tema específico como Justiça, Conhecimento,
Coragem, etc. Já Protágoras é um “sofista” nascido alguns anos antes de Platão.
Um sofista é um sujeito tido como conhecedor de técnicas de aprendizado de
oratória, matemática, geometria, etc.. É alguém que tem uma “especial perícia
ou conhecimento para comunicar. Sua sophia [sabedoria] é prática, quer nos
campos da conduta e política, quer nas artes técnicas” (GUTHRIE, 1995, p. 34).
A relação entre as posições de Platão e Protágoras acerca do conhecimento é,
para dizer o mínimo, tensa. Protágoras é considerado, do ponto de vista do
conhecimento, um relativista. Ele defendia, por exemplo, que para cada tema
havia um argumento a favor e outro contra. Dizia que podia fazer do “argumento mais
fraco o mais forte”. No Teeteto de Platão ele aparece defendendo sua tese mais
famosa, a ideia de que “(...)o homem é a medida de todas as coisas, das que são
e das que não são. (Teeteto, 152c). No Teeteto Platão faz um exame cuidadoso
dessa doutrina, destacando que não se trata apenas de uma frase de efeito
criada pelo sofista para agradar às multidões, estratégia típica nas atividades
de Protágoras. Protágoras realmente defendeu a tese de que em assuntos como política,
moral, religião, saúde, o indivíduo é a medida, isto é, não existe nada além
daquilo que cada um percebe em seu campo de visão, audição, etc. Essa filosofia
gera um relativismo, uma perspectiva que leva em conta apenas aquilo que a
sensibilidade de uma pessoa capta. Mas por quê? Que tem a ver sensibilidade com
a ideia de que o homem individual é medida de todas as coisas? Em primeiro
lugar, é preciso considerar que Protágoras lecionava, segundo Platão, duas
qualidades diferentes de ensino. Um ensino mais popular e acessível era dado à
multidão que, ocasionalmente, pagava e frequentava seus cursos. Um outro tipo
de lição, bem mais detalhada, era ministrada aos chamados “iniciados”,
discípulos assíduos que recebiam as explicações pormenorizadas das teses de
Protágoras. Em segundo lugar, sempre de acordo com Platão no Teeteto, o sofista
utilizava em suas lições aos iniciados o núcleo principal da filosofia do
pré-socrático Heráclito para dar um fundamento à tese do homem- medida. De
Heráclito Protágoras emprestava a ideia de que “tudo está em
movimento”. Com esse pensamento, Protágoras negava que alguma coisa pudesse
manter suas qualidades essenciais de forma perene. Por exemplo, com a ideia de
que tudo está sob efeito de um fluxo constante justifica-se porque não há razão
para acreditar em ideias gerais acerca da humanidade, do destino humano, de
conhecimento, etc. Protágoras chega a dizer que o conhecimento de medicina,
mesmo que se defina por um conjunto de técnicas sobre o bem-estar do corpo, não
é um caso de verdade absoluta. Os preceitos médicos não fazem mais do que
substituir uma sensação ruim, como a febre, por uma sensação boa, a saúde.
Estamos aqui no plano da sensação e, sobretudo, bem de acordo com a doutrina de
que cada um é juiz solitário de tudo que é verdadeiro e falso. Em suma: é
porque tudo se move que o homem, ser sensível capaz de reter momentaneamente
alguns traços das coisas, é a medida de tudo. Protágoras pode ser considerado,
desse modo, o primeiro relativista da história.
Platão escreveu
que os homens estão ligados desde o nascimento às sensações primitivas. Por
conta disso, vivem num estado mental permeado por “imagens” dos objetos
existentes. Para Platão poucos alcançam o verdadeiro conhecimento. Platão crê
que é definitivo o apego da maioria das pessoas a realidades transitórias, mas
não deixa de indicar, repetidas vezes e em vários textos, o caminho que leva ao
verdadeiro conhecimento. Esse caminho é diferente daquele indicado por Protágoras
em muitos pontos essenciais, como veremos. A principal obra de Platão é um
diálogo chamado República. É uma síntese de seu pensamento. Não por acaso é o
texto mais divulgado de Platão. Nessa obra Platão desenvolve uma série de teses
sobre conhecimento. Mas o autor escreveu uma outra obra que tratava
exclusivamente da questão do conhecimento. Trata-se do diálogo Teeteto, já
citado. Confeccionado após a República, provavelmente num momento onde Platão
já não estava contente com os resultados expostos em sua obra anterior, é
nessa obra que Platão desafia de forma definitiva o relativismo de Protágoras. Para
dar cabo dessa tarefa, Platão desenvolve três alternativas para a definição de
conhecimento:
1) conhecimento
é sensação; 2) crença-opinião verdadeira é conhecimento e 3) opinião verdadeira
justificada com a razão é conhecimento. A primeira alternativa é a opinião de
Protágoras. Na passagem 186c do Teeteto Platão é categórico ao rebatê-la:
Naquelas
impressões (sensações), por conseguinte, não é que reside o conhecimento, mas
no raciocínio a seu respeito; é o único caminho, ao que parece, para atingir a
essência e a verdade; de outra forma é impossível.
Ao dizer que o
raciocínio sobre as impressões é o que caracteriza o conhecimento, Platão
condena a tese de Protágoras à inconsistência epistemológica, isto é, nada na
tese permite retratar o processo de conhecimento. Um pouco antes deste trecho,
o diálogo apresenta a noção de alma como responsável pela “síntese” da
sensação. Platão insiste ali que o que organiza em nós o fluxo de dados
captados pelos sentidos é o que hoje chamamos mente ou espírito. Platão avalia
que a sensação não pode ser responsável por um conhecimento porque ela não
opera no nível do “por que”, mas no nível do “através de que” (Diès, 1972, p.
458). Em outras palavras, Platão está dizendo que a sensibilidade não é capaz
de fazer um juízo da forma “esta flor é bela”. Mesmo que meus órgãos sejam
tocados pela beleza da flor, a expressão “é bela”, e seu sentido, é uma
operação realizada pelo espírito. Platão rejeita também a ideia de que opinião
ou crença, ainda que verdadeira, possam ser conhecimento. No diálogo Mênon
(98a) Platão escreve:
Pois
também as opiniões que são verdadeiras, por tanto tempo quanto permaneçam, são
uma bela coisa e produzem todos os bens. Só que não se dispõem a ficar muito
tempo, mas fogem da alma do homem, de modo que não são de muito valor, até que
alguém as encadeie por um cálculo de causa. (...) e quando são encadeadas, em
primeiro lugar, tornam-se ciências, em segundo lugar, estáveis. E é por isso
que a ciência é de mais valor que a opinião correta, e é pelo encadeamento que
a ciência difere da opinião correta.
Esse “encadeamento” de
que fala o filosofo é o raciocínio que cada um é capaz de fazer sobre os elementos
que compõem sua opinião. Trata-se, como disse Da Costa na passagem já citada no
texto, de ter uma justificação para sua crença. Em Platão essa justificação é o
conhecimento das causas. Aristóteles desenvolveu posteriormente a ideia de que,
se uma pessoa tem conhecimento, ela deve dominar necessariamente o saber da
causalidade dos eventos e coisas. Ciência ou Conhecimento, tanto para
Aristóteles como para Platão, é o domínio das conexões causais verificadas na
realidade. No que toca à crença, para Platão trata-se de um tipo de fluxo de ideias
que se caracteriza por uma tendência natural à mudança. Nossas crenças podem
até ser verdadeiras ou plausíveis, como, por exemplo, no caso de dizermos que
“o egoísmo é uma propriedade natural do ser humano”. Mas até que saibamos expor
a causa, dizer o porquê, ou enunciar a função que a natureza reservou a esse
sentimento, não estamos autorizados a emitir aquele juízo com pretensão de
conhecimento. Se alguém lançar contra essa ideia uma série de argumentos,
podemos modificar nossa posição sobre o problema, sem, no entanto, conhecer de
fato a questão. Platão dizia que a estrutura de nossas opiniões segue mais ou
menos o esquema de nossas sensações. No caso da visão, ter uma experiência
sensória é ter um olho que recebe, com ajuda da luz, aspectos dos objetos. À
medida que o objeto se movimenta, nossa visão também se modifica. Se estiver
mais próximo, vejo com mais nitidez o tom de cinza. Se me afastar demais, não
consigo distinguir a cor. Para Platão, toda sensação, seja auditiva, gustativa
ou tátil, é um caso de aproximação entre um órgão sensível (olho, ouvido, etc.)
e um objeto. A crença/opinião, para Platão, tem essa estrutura porque as
informações que adquirimos mediante opinião se mantêm apenas até que outra
sensação, mais forte ou mais adequada, substitua a sensação anterior que nos
fazia emitir aquela opinião. Desse modo, toda informação que administramos a
título de opinião está sujeita a mudança, da mesma forma que nossa visão dos
objetos se modifica pelo deslocamento de posição, seja do nosso olho ou do
objeto. Não é o que ocorre quando temos conhecimento. De modo similar à crença,
o conhecimento retém um feixe de aspectos dos objetos. Mas o que o distingue é
o fato de focalizar os traços permanentes do objeto. Desse modo, a grande
diferença, para Platão, entre opinião e conhecimento é que a primeira fornece ao
sujeito um quadro provisório do mundo, ao passo que o conhecimento é o estudo
daquilo que jamais muda. No Teeteto Platão diz que é preciso que a mente se ponha
a raciocinar sobre os dados para que haja a formulação de um conhecimento. O
raciocínio é uma atividade do pensamento, para Platão a mais nobre, porque é
por meio dele que conseguimos atingir o verdadeiro núcleo de cada realidade.
Atividade
1º) Estabeleça, de
acordo com o texto, a diferença entre crença e conhecimento.
2º) Descreva o que é o
racionalismo para Platão.
3º) Defina o que é o
relativismo defendido por Protágoras.
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